Um reflexão sobre espiritualidade



Há no coração do ser humano
Ais do fundo do peito
Suspirando por algo que nem sempre se sabe dizer
O nome...
Pode ser comida, casa,
Bebida, saúde, justiça,
Amor.
Mas é mais. É bem mais.
É algo que podemos chamar
De Espiritualidade.
Ivone  Gebara

Espiritualidade é um dos temas mais atuais de nossos dias. Em meio a tantas situações dramáticas, problemas políticos, sociais, a um alto índice de pessoas com depressão, a espiritualidade é tema comum em nossa cultura, não só no meio religioso, mas também entre jovens, intelectuais, famosos cientistas, empresários, pessoas que nunca tiveram ligação com religiosidade alguma.

O fato é, que existem algumas ênfases que estão sendo mudadas. Leonardo Boff é um dos que percebem essa mudança e diz que em todos os países, há uma demanda por valores não-materiais, uma redefinição do ser humano como ser que busca um sentido plenificador, que está a procura de valores que inspirem profundamente sua vida. Essa busca em países subdesenvolvidos é facilmente explicada, pois a falta de condições mínimas para se viver podem levar as pessoas à “anestesiarem-se” na busca religiosa, na busca do transcendente. Porém essa busca tem se notado também em países tidos como de primeiro mundo, que não teriam, teoricamente, nenhuma necessidade. O que notamos então, é o que a busca espiritual está presente em todas as civilações, bem ou mal desenvolvidas, todos precisam de “algo mais”, que não é saciado por bens materiais.

Nessa busca, o homem pode encontrar uma série de vertentes. Todos tem uma definição para uma espiritualidade sadia, que traga satisfação interior, e que ajude na concretização de sonhos. Nos orientais, muito voltados para o interior, o pensamento sobre espiritualidade é bem representado na resposta dado certa vez por Dalai-Lama quando questionado sobre o que seria espiritualidade, ele respondeu: “Espiritualidade é aquilo que produz no ser humano uma mudança interior.” Eis aí, o pensamento oriental, a espiritualidade tem a função de transformar o interior do ser humano, quando se encontra a paz interior, se encontra o caminho para uma vida feliz.

A espiritualidade no ocidente trilha um caminho diferente, os ocidentais tem a questão material muito forte. A questão financeira está sempre presente, seja com o catolicismo romano que cobra as indulgências, seja com o protestantismo que ganha força em uma Europa que quer ter mais poder, mais autonomia política e financeira.

No Brasil, vemos que um dos grandes movimentos religiosos do nosso tempo apresenta uma espiritualidade voltada para a satisfação pessoal imediata, são promessas de prosperidade, de um bem estar descompromissado com as circunstâncias a nossa volta.

Esses são apenas alguns exemplos de como muitas vezes se entende espiritualidade, existem muitas outras formas, muitos outros jeitos, muitas outras concepções do que é ter uma vida espiritual sadia.

Nós cristãos partimos da primícia que uma espiritualidade sadia, passa pelo conhecimento de Cristo, nenhuma ramificação cristã discorda desse ponto, a divisão então vem quando se trata do que esse conhecimento vai produzir em nós.

Para muitos, o conhecimento de Cristo é uma fuga de problemas, de crises e de responsabilidades. Eu “conheço” e “sirvo” a Cristo para que Ele possa resolver problemas que eu mesmo poderia resolver, mas que deixo nas mãos dele. O meu relacionamento é pautado em necessidades pessoais e na resolução das mesmas. Essa espiritualidade é alienante, pois exclui a preocupação com o próximo, leva a uma conformidade com a realidade existente, uma vez que tudo está nas mãos do diabo e só o que podemos fazer é orar.

Para outros, espiritualidade é sinônimo de libertação. Reino de Deus não é uma realidade meramente futura, mas sim uma atitude comprometida também com tarefas temporais. Nas palavras de Alfonso Garcia Rubio, “O Reino de Deus implica em um mundo novo em que o mal e o sofrimento são vencidos; um mundo novo onde prevalecem a justiça, fraternidade e a paz.” Nessa concepção, valorizar projetos pessoais em detrimento a projetos libertadores de Deus é pecado. Seguir a Cristo, para se ter uma espiritualidade sadia, é ter como paradigma alguém que optou por uma mensagem de inconformismo, de libertação, mesmo que isso trouxesse transtornos com poderosos da época.

Na América Latina, onde muitos seguem o exemplo dos poderosos que dominam visando apenas suas necessidades, uma espiritualidade pautada em Jesus é comprometida com pobres, com marginalizados, com excluídos. Aqui, a Teologia tem um papel primordial, José Sols Lucia diz que “o objeto de estudo da teologia é Deus: esse Deus que está presente na realidade e que nos chama para entrarmos nela, transformá-la, e redivinizá-la.” Ou seja, não se pode refletir teologicamente sem ouvir o clamor de um povo que sofre, seria uma teologia e uma espiritualidade vazia.

Essa crítica a uma espiritualidade descompromissada com a realidade e o sofrimento existente, não é nova e muito menos privilégio da América latina. John Wesley, em um de seus sermões demonstrou sua total revolta contra religiosos preocupados somente com seus próprios interesses, ele declara: “Refleti vós que tendes vida tranqüila na terra e de nada tendes necessidade, senão de olhos para ver e de ouvidos para ouvir e de coração para entender o quanto Deus vos tem feito, quão terrível é procurar o pão diariamente e não achá-lo! Talvez o encontrar o conforto de 5 ou 6 filhos, clamando por aquilo que não podeis dar! Não é porque o homem é contido por mão invisível que ele, desde logo, não “amaldiçoa a Deus  e morre? Oh, falta de pão! Falta de pão! Quem pode dizer o que isso  significa enquanto não o sente em si mesmo? Fico atônito, porque isso não causa mais do que tristeza mesmo naqueles que crêem.” Quantos nos nossos dias crêem, se compadecem, mas se satisfazem em saber que sua própria realidade é outra?

O que John Wesley e tantos outros pensadores querem dizer é que uma espiritualidade que não sonhe com igualdade, que não busque através dos valores do Reino de Deus, uma transformação social, que não enxergue um Deus tão presente nas atividades seculares, quanto nas eclesiais, que não busque respostas aos clamores sofridos de um povo liderado por líderes da escola de Faraó, não pode ser cristã, no sentido mais rico desta palavra.

Ao vivermos uma espiritualidade cristã, será produzido em nosso interior, uma força que nos faz lutar, que nos faz sofrer juntos. A mesma força que levou Deus a entregar seu Filho unigênito como prova de seu comprometimento com sua criação, será produzido em nós o amor, essência de Deus.
Termino com as palavras de alguém de alguém que julgo não ser apenas um teórico ao falar de espiritualidade, Leonardo Boff:

Se reservarmos em nossa vida um pouco de espaço para essa espiritualidade, ela vai nos transformando, pois este é o condão da espiritualidade: produzir uma transformação interior. Essa transformação acenderá nossa chama interior que produz luz e calor e nos dá mil razões para vivermos como humanos. Assim, caminharemos serenos neste mundo, junto com outros e na mesma direção que aponta para a Fonte de abundância permanente de vida e de eternidade. E mergulharemos nessa Fonte de espiritualidade, que é Fonte de espírito, de vida, de amorização, de realização e de paz.”



Bibliografia:

FERNANDO, Edson e Rezende, Jonas. Dores que nos transformam – quando frágeis, então somos fortes. – Rio de Janeiro: Mauad, 2002

BOFF, Leonardo. Espiritualidade: um caminho de transformação. – Rio de Janeiro: Sextante, 2001

RUBIO, Alfonso Garcia. O encontro com Jesus Cristo vivo. – São Paulo: Paulinas, 1994

SOLS LUCIA, José. Teologia da marginalização: os nomes de Deus [tradução Roberto Tápia Vidal]. – São Paulo: Paulinas, 1995.

BURTNER, R. W. E CHILES, R. E., compiladores. Coletânea da Teologia de João Wesley. 2. ed. Rio de Janeiro. Igreja Metodista, Colégio Episcopal, 1995.